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quarta-feira, 27 de julho de 2011

Morto até o anoitecer

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Capítulo 1
Esperei pelo vampiro durante anos, até que, um dia, ele entrou no bar.
Desde que os vampiros começaram a “sair do caixão” (como se dizia, por gozação) quatro anos atrás, eu tinha a esperança de que algum deles aparecesse em Bon Temps. Tínhamos todas as minorias em nossa cidadezinha — por que não teríamos a mais nova, os mortos-vivos agora legalmente reconhecidos? Mas o norte caipira da Louisiana, na verdade, não era muito sedutor para vampiros, ao que parecia; por outro lado, Nova Orleans era um centro legítimo para eles — por causa daquela coisa toda de Anne Rice, certo?


A distância entre Bon Temps e Nova Orleans não é assim tão grande, e todos que vinham ao bar diziam que, se você jogasse uma pedra numa esquina daqui, acertaria um lá. Embora fosse mais sensato não fazer isso.


Mas eu esperava pelo meu próprio vampiro.


Pode-se notar que não saio muito. E não é porque eu não seja bonita. Eu sou. Sou loura, de olhos azuis, tenho 25 anos, minhas pernas são fortes e meu peito é volumoso, e tenho uma cinturinha de vespa. Eu fico bem no uniforme de verão de garçonete que Sam estabeleceu para nós: calções pretos, camiseta branca, meias brancas, Nikes pretos.


Mas eu tenho um inconveniente. É como eu tento definir esta coisa.


Os fregueses de bar afirmam que sou louca.


Em todo caso, o resultado é que eu quase nunca arranjo um namorado. Portanto, pequenas amabilidades fazem uma grande diferença para mim.


E ele sentou-se numa de minhas mesas — digo, o vampiro.


Saquei imediatamente o que ele era. Espantou-me que ninguém mais ao redor tivesse se virado para olhar. As pessoas não notavam! Mas, para mim, a pele dele tinha um pequeno brilho, e reconheci a sua condição no ato.


A alegria foi tanta que eu poderia dançar, e de fato ensaiei um passo caminhando pelo bar. Sam Merlotte, meu chefe, ergueu o olhar da bebida que estava preparando e deu-me um sorrisinho. Apanhei minha bandeja e a toalha e rumei na direção da mesa do vampiro. Tinha a esperança de que meu batom estivesse ainda firme e que meu rabo-de-cavalo não tivesse saído do lugar. Eu sou meio ansiosa, e sentia meu sorriso puxando os cantos de minha boca para cima.


Ele parecia perdido em seus pensamentos, e eu tive oportunidade de dar uma boa olhada nele de alto a baixo antes que erguesse os olhos. Ele tinha pouco menos que l,82m, calculei. Tinha cabelos castanho-escuros bem espessos, penteados diretamente para trás e chegando à gola de sua camisa, e suas longas costeletas pareciam curiosamente fora de moda. Naturalmente, era pálido; claro, ora, pois estava morto, se você acredita naquelas velhas histórias. A teoria politicamente correta, aquela que os vampiros defendiam em público, é que a criatura era vítima de um vírus que a deixava aparentemente morta por alguns dias e, portanto, alérgica à luz do sol, prata e alho. Os detalhes variavam conforme os jornais que você lesse. Eles andavam cheios de matérias sobre vampiros, ultimamente.


De qualquer modo, seus lábios eram adoráveis, esculpidos com perfeição, e ele tinha sobrancelhas escuras e arqueadas. Seu nariz descia aquilino daquele arco, como o de um príncipe num mosaico bizantino. Quando ele por fim ergueu o olhar, vi que seus olhos eram mais escuros que seus cabelos, e o branco deles era incrivelmente branco.


— Em que posso lhe servir? — eu perguntei, feliz além da conta.


Ele arqueou as sobrancelhas.


—Você tem sangue sintético engarrafado? — perguntou.


— Não, lamento muito! Sam encomendou um pouco. Vai chegar na próxima semana.


— Então, me sirva um pouco de vinho tinto, por favor — ele disse, e sua voz era fria e clara, como a água de um riacho deslizando sobre pedras.


Eu dei uma grande risada. Era perfeito demais.


— Não ligue pra Sookie, senhor, ela é louca — disse uma voz familiar que vinha da mesa junto à parede.


Toda a minha felicidade se desfez, embora eu pudesse sentir ainda o sorriso repuxando meus lábios. O vampiro olhava diretamente para mim, observando a vida que se esvaía do meu rosto.


— Trago seu vinho num instante — eu disse, e me afastei, sem nem mesmo olhar para o rosto presunçoso de Mack Rattray.


Ele vinha ao bar quase todas as noites, ele e sua mulher, Denise. Eu os chamava de Casal Rato. Tinham se esforçado ao máximo para me fazer mal desde que se mudaram para um trailer de aluguel em Four Tracks Corner. Eu alimentava a esperança de que se mudassem de Bon Temps tão repentinamente como tinham chegado.


Quando apareceram pela primeira vez no bar de Sam Merlotte, eu ouvi suas idéias com má vontade — bem sei, foi baixeza de minha parte. Fiquei aborrecida como todo mundo, e embora eu passe a maior parte do tempo tentando bloquear as idéias que outras pessoas tentam enfiar em minha cabeça, às vezes eu as deixo entrar. Portanto, fiquei sabendo sobre os Rattrays algumas coisas que creio que mais ninguém sabia. Por exemplo, que tinham passado uns tempos na cadeia, embora eu não soubesse por quê. Outra coisa foi que li os pensamentos sujos que Mack Rattray tinha a meu respeito. E ouvi então, nos pensamentos de Denise, que ela abandonara um bebê que tivera havia alguns anos, um bebê que não era filho de Mack.


E eles não eram de dar gorjeta, também.


Sam encheu um copo com o vinho tinto da casa, olhando para a mesa do vampiro enquanto o punha sobre minha bandeja.


Quando Sam voltou a olhar para mim, notei claramente que ele também sabia que nosso novo freguês era um morto-vivo. Os olhos de Sam são tão azuis quanto os do Paul Newman, em contraste com meus olhos azuis de um cinzento apagado. Sam é louro também, mas seu cabelo é encaracolado e seu tom de louro se aproxima a um vermelho-ouro cor de brasa. Ele está sempre um pouco queimado de sol, e embora pareça magro nas roupas que usa, eu o vi muitas vezes descarregar grandes pesos dos caminhões de transporte, e ele tem muita força em seus membros superiores. Eu nunca ouço os pensamentos de Sam. Porque ele é meu chefe. Tive que me demitir de vários de meus empregos anteriores porque descobria coisas que não queria saber sobre meus chefes.


Mas Sam não fez comentário algum sobre o vampiro, ele apenas me passou o vinho. Examinei o copo para ter certeza de que estava radiosamente limpo e rumei de volta para a mesa do vampiro.


— Seu vinho, senhor — eu disse cerimoniosamente, e coloquei o copo de forma cuidadosa na mesa, bem em frente a ele.


Ele me olhou novamente, e eu encarei seus belos olhos, aproveitando a chance.


— Espero que goste — eu disse orgulhosamente.


Mack Rattray gritou atrás de mim:


— Ei, Sookie! Precisamos de um outro jarro de cerveja aqui!


Suspirei, resignada, e virei-me para levar o jarro vazio que estava na mesa dos Ratos. Denise estava em ótima forma nessa noite, notei, usando um traje de frente única e calções curtos, sua massa de cabelos castanhos arrumada na cabeça em elegantes emaranhados. Denise não era bonita, na verdade, mas era tão vistosa e confiante que a gente demorava um pouco para notar isso.


Um pouquinho depois, para meu desgosto, notei que os Rattrays tinham se mudado para a mesa do vampiro. Estavam conversando com ele. Não pude ver se ele estava respondendo com entusiasmo, mas ele tampouco saiu da mesa.


— Olhe para aquilo! — eu disse, com desagrado, para Arlene, minha colega de trabalho.


Arlene é ruiva, sardenta e dez anos mais velha que eu, e foi quatro vezes casada. Ela tem dois filhos, e, de vez em quando, acho que me considera o terceiro.


— Cara nova no pedaço, hem? — ela disse, com pouco interesse.


Arlene, atualmente, está namorando Rene Lenier, e embora eu não entenda o que viu nele, ela parece bem satisfeita. Eu acho que Rene foi seu segundo marido.


— Oh, ele é um vampiro — eu disse, porque precisava compartilhar com alguém a minha grande satisfação.


— É mesmo? Aqui? Bem, imagine só — ela disse, sorrindo um pouco para demonstrar que estava gostando de ver a satisfação que eu sentia. — Mas, benzinho, ele não deve ser muito brilhante, se está conversando com os Ratos. Por outro lado, Denise está se assanhando para o lado dele de um modo descarado.


Depois do comentário de Arlene foi que me dei conta do fato; ela é muito melhor que eu para avaliar situações sexuais, devido à sua experiência no assunto, algo que não tenho.


O vampiro estava faminto. Eu sempre fora informada de que o sangue sintético que os japoneses tinham criado mantinha os vampiros satisfatoriamente nutridos, mas não satisfazia realmente a sua fome, motivo pelo qual aconteciam uns “Incidentes Lamentáveis” de vez em quando. (Era o eufemismo vampírico para o sanguinário assassinato de um ser humano.) E ali estava Denise Rattray, mostrando a sua garganta, exibindo seu pescoço de ponta a ponta... que grande piranha!


Meu irmão, Jason, entrou no bar, e deu uma voltinha para vir me dar um abraço. Ele sabe que as mulheres gostam de um homem que se mostra carinhoso com a família e gentil com os deficientes, portanto, ele me dar um abraço era uma dupla recomendação automática. Não que Jason precise de mais trunfos do que já tem. Ele é bonitão. Ele pode ser rude, também, mas a maior parte das mulheres parece querer ansiosamente ignorar isso.


— Ei, mana, como vai a vovó?


— Ela está bem, como sempre. Apareça pra vê-la.


— Prometo que vou. Quem está disponível hoje?


— Verifique você mesmo.


Percebi que, quando Jason começou a lançar olhares ao redor, houve um alvoroço entre as mulheres, que foram ajeitando seus cabelos, blusas e lábios.


— Ei. Vejo a DeeAnne ali. Ela está livre?


— Ela está com um caminhoneiro de Hammond. Ele foi ao banheiro. Tome cuidado.


Jason sorriu para mim, e eu me espantei com o fato de as outras mulheres não notarem o egoísmo que havia naquele sorriso. Até a Arlene se aprumou em sua camiseta quando Jason entrou, e, depois de passar por quatro maridos, ela bem que devia saber analisar um pouco melhor os homens. A outra garçonete com quem eu trabalhava, Dawn, jogou seu cabelo para a frente e aprumou a sua espinha para que seus seios ficassem empinados. Jason lançou para ela um aceno amigável. Ela fez um ar de desprezo. Está louquinha pelo Jason, mas quer que seja ele a tomar a iniciativa.


Fiquei realmente atarefada — todo mundo aparece no bar do Merlotte no sábado à noite por algumas horas — portanto, perdi meu vampiro de vista por uns momentos. Quando depois consegui uma brecha para dar uma olhada para ele, ainda estava conversando com Denise. Mack estava olhando para ele com uma expressão tão ávida que cheguei a ficar preocupada.


Aproximei-me da mesa deles, olhando fixamente para Mack. Finalmente, deixei minha guarda baixar e escutei.


Mack e Denise tinham sido presos precisamente por drenar vampiros.


Apesar de profundamente irritada, carreguei automaticamente um jarro de cerveja e alguns copos para uma mesa de quatro pessoas que reclamavam, gritando. Desde que o sangue do vampiro fora tido como capaz de aliviar temporariamente os sintomas de algumas doenças e aumentar a potência sexual, mais ou menos como juntar prednisona e Viagra numa fórmula só, surgira um enorme mercado negro de sangue de vampiro genuíno, não-diluído. Onde há mercado, há fornecedores; nesse caso, deduzi, os fornecedores seriam aquele vil Casal Rato. Pegavam os vampiros numa armadilha e depois os drenavam, vendendo os pequenos frascos de sangue a mais ou menos 200 dólares cada. Tinha sido a droga mais procurada, ao menos nos últimos dois anos. Alguns consumidores enlouqueciam depois de beber puro sangue de vampiro, mas o problema não chegava a atrapalhar o mercado.


Em geral, o sangue drenado não durava muito. Os drenadores deixavam os vampiros mortos com estacas ou simplesmente jogavam-nos a céu aberto. Quando o sol surgia, já era. De tempos em tempos, a gente lia sobre uma reviravolta quando os vampiros conseguiam escapar. Aí, eram os drenadores que morriam.


Agora meu vampiro estava se levantando da mesa e saindo junto com os Ratos. Mack olhou para mim, e eu o vi claramente assustado com a expressão com que se deparou em meu rosto. Ele virou-se, dando de ombros para mim, como todo mundo.


Isso me deixou furiosa. Realmente furiosa.


O que é que eu deveria fazer, diante daquilo? Enquanto lutava comigo mesma, eles saíam pela porta. O vampiro acreditaria em mim se eu corresse atrás deles e lhe contasse a verdade? Ninguém acreditaria. E, se alguém acreditasse, me odiaria e teria horror de mim por ser capaz de ler os pensamentos ocultos nas mentes humanas. Arlene me pedira para ler a mente de seu quarto marido quando numa certa noite ele aparecera para pegá-la, porque achava com certeza que ele estava pensando em abandoná-la, e abandonar os filhos também, mas eu não a atendi porque queria manter a única amiga que eu tinha. E mesmo Arlene não fora capaz de me pedir diretamente, porque isso seria admitir que eu tinha este dom, esta maldição. As pessoas não queriam admitir o fato. Preferiam pensar que eu era louca. O que eu realmente quase me tornava, de vez em quando!


Portanto, fiquei agitada, confusa e assustada, furiosa, e aí tive a certeza de que precisava entrar em ação. Eu fora picada por aquele olhar que Mack lançara sobre mim — como se eu fosse uma coisinha desprezível.


Cruzei o bar na direção de Jason, e fui até onde ele estava tentando seduzir DeeAnne. Ela não demorava muito para ser seduzida, segundo se dizia. O caminhoneiro de Hammond estava com uma expressão fula da vida do outro lado.


— Jason — eu disse com urgência. Ele virou-se para me dar um olhar de censura feroz. — Ouça, aquela corrente ainda está lá atrás da sua picape?


— Nunca saio de casa sem ela — ele disse preguiçosamente, seus olhos esquadrinhando meu rosto à procura de sinais de algum problema. — Você vai brigar com alguém, Sookie?


Sorri para ele, tão acostumada a soltar risadas que aquilo foi fácil.


— Eu lhe asseguro que não — disse animadamente.


— Ei, você está precisando de alguma ajuda?


Afinal, ele era meu irmão.


— Não, obrigada — eu disse, tentando parecer tranqüila. E fui rapidamente na direção de Arlene. — Ouça, preciso sair um pouquinho. Minhas mesas estão meio vazias, você pode dar uma olhada por mim?


Eu não pensei que nunca tinha pedido uma coisa dessas a Arlene, embora a houvesse substituído muitas vezes. Ela, também, ofereceu-me ajuda.


— Está tudo em ordem — eu disse. — Voltarei assim que puder. Se você cuidar de minha parte, prometo faxinar o seu trailer.


Arlene fez um sinal afirmativo com sua cabeleira vermelha euforicamente.


Apontei para a porta de serviço, para mim mesma, e fiz o que pude com meus dedos, para dizer a Sam que eu estava saindo.


Ele assentiu. Mas não pareceu lá muito feliz.


Portanto, fui me retirando, tentando fazer com que meus pés não fizessem muito barulho no cascalho. O estacionamento dos empregados fica nos fundos do bar, depois de uma porta que leva à despensa. O carro do cozinheiro estava ali, e também o de Arlene, o de Dawn e o meu. À minha direita, ao leste, a picape de Sam estava estacionada em frente a seu trailer.


Eu saí da área de estacionamento de cascalho em direção à área de asfalto que cobria o estacionamento de fregueses, que era maior, no lado oeste do bar. Árvores cercavam a clareira onde ficava o bar de Merlotte, e as bordas do estacionamento eram, na maior parte, de cascalho. Sam o mantinha bem iluminado, e o clarão surrealista das luminárias altas do estacionamento fazia tudo parecer um tanto estranho.


Eu vi o esburacado carro esporte vermelho do Casal Rato, por isso sabia que estavam por perto.


Finalmente, encontrei o carro de Jason. Era preto com espirais de água-marinha e cor-de-rosa pintadas sob encomenda nos dois lados. Estava na cara que ele gostava de aparecer. Pulei pela porta de trás e me pus a fuçar em sua cama, à procura da corrente, um grosso colar de anéis que ele carregava consigo em caso de briga. Eu a enrolei e a carreguei presa ao meu corpo, para que não fizesse barulho.


Refleti por um momento. O único lugar deserto no meio do caminho para o qual os Rattrays poderiam ter atraído o vampiro era o fim do estacionamento, onde as árvores chegam a despencar sobre os carros. Portanto, me movi furtivamente naquela direção, tentando me movimentar rápida e silenciosamente.


Eu parava a todo momento e me punha a escutar. Logo ouvi um gemido e sons abafados de vozes. Serpenteei entre os carros, e localizei-os bem onde supunha que eles estariam. O vampiro estava jogado de costas no chão, a face contorcida de agonia, e o brilho de correntes irradiava de seus pulsos, chegando até os seus tornozelos. Prata. Já havia dois pequenos frascos de sangue no chão, ao lado dos pés de Denise, e, enquanto eu olhava, ela já preparava um novo coletor com a agulha. O torniquete abaixo do cotovelo do vampiro apertava cruelmente seu braço.


O casal estava de costas para mim, e o vampiro ainda não tinha me visto. Eu soltei a corrente enrolada e um bom pedaço dela se estendeu livremente. Quem eu deveria atacar primeiro? Os dois eram mesquinhos e viciosos.


Lembrei-me da despedida desdenhosa de Mack e do fato que ele nunca tinha me deixado uma gorjeta. Mack primeiro.


Eu nunca me envolvera numa briga. De algum modo, eu de fato estava esperando ansiosamente por uma ocasião assim.


Saltei de trás da picape e balancei a corrente. Ela bateu com força nas costas de Mack, que estava ajoelhado junto à sua vítima. Ele gritou e levantou-se, imediatamente. Depois de lançar um olhar para trás, Denise começou a enfiar a terceira injeção. A mão de Mack desapareceu em sua bota e voltou com um brilho diferente. Ele tinha pegado uma faca.


— Opa — eu disse, e dei uma risada para ele.


— Sua piranha louca! — ele gritou.


Sua voz soava como se ele estivesse ansioso por fazer uso daquela faca. Eu estava envolvida demais para manter minha guarda, e tive um claro vislumbre do que Mack queria fazer comigo. Isso me deixou realmente louca da vida. Eu fui na direção dele com plena intenção de feri-lo o mais que pudesse. Mas ele estava preparado para me rechaçar e pulou para a frente com a faca enquanto eu balançava a corrente. Ele tentou cortar o meu braço e falhou. A corrente, ao enroscar, envolveu seu pescoço descarnado como uma amante. O grito de triunfo de Mack transformou-se num gorgolejo. Sua faca caiu e ele agarrou os elos da corrente com as duas mãos. Perdendo o fôlego, ele desabou no pavimento duro, puxando a corrente de minhas mãos.


Bem, lá se foi a corrente do Jason. Eu me abaixei rapidamente e apanhei a faca de Mack, segurando-a de um modo que parecesse que eu sabia como usá-la. Enquanto isso acontecia, Denise se movia desajeitadamente, parecendo uma bruxa primária a se agitar nas zonas de luz e sombra das lâmpadas.


Ela interrompeu seus movimentos quando notou que eu estava com a faca de Mack. Ela zangou-se, rogou pragas e disse coisas terríveis. Esperei até que ela acabasse para dizer:


— Cai fora. Já.


Denise me olhou como se quisesse perfurar minha cabeça com seu ódio. Tentou apanhar os frascos de sangue, mas eu sibilei para que não mexesse neles. Daí, ela ergueu Mack. Ele ainda estava fazendo sons de engasgo e gorgolejo e segurando a corrente. Denise praticamente o arrastou para o carro e o empurrou para o lado do banco do carona. Puxando algumas chaves de seu bolso, ela entrou para sentar-se ao volante.


Quando ouvi a máquina rugir, repentinamente percebi que os Ratos tinham agora uma outra arma nas mãos. Mais rápido do que tinha me movimentado até aquele momento, corri para erguer a cabeça do vampiro e disse a ele, ofegante:


— Vamos, levante-se.


Peguei-o por debaixo de seus braços e puxei-o com todas as minhas forças, e ele entendeu, firmou seus braços e fez força. Nós estávamos bem na linha das árvores quando o carro vermelho veio rugindo sobre nós. Denise falhou por um triz ao ter que desviar para evitar uma colisão com um pinheiro. Então ouvi o grande motor do carro dos Ratos recuar lá longe.


— Caramba — eu suspirei, e me agachei junto ao vampiro porque meus joelhos já não agüentavam mais.


Respirei fundo por uns momentos, tentando me recuperar. O vampiro se movimentou um pouquinho, e eu dei-lhe uma olhada. Para meu horror, vi pequenos feixes de fumaça saindo de seus pulsos onde a prata os ferira.


— Oh, coitadinho — eu disse, furiosa comigo mesma por não ter notado isso a princípio. Ainda tentando recuperar o fôlego, comecei a soltar as finas amarras de prata, que pareciam fazer parte de uma longa corrente. — Pobre querido — eu murmurei, não parando para pensar senão mais tarde o quanto aquilo podia parecer incongruente.


Tenho dedos ágeis, e soltei seus pulsos bem rapidamente. Pensava em como os Ratos teriam distraído o vampiro enquanto se preparavam para amarrá-lo, e eu me sentia avermelhar ao imaginar a cena.


O vampiro aninhou os braços em seu peito enquanto eu me ocupava em desamarrar suas pernas. Seus tornozelos não tinham sido afetados, já que os drenadores não tinham se preocupado em subir suas calças jeans e colocar a prata direto sobre sua pele.


— Lamento muito não ter chegado aqui mais depressa — eu disse, como pedido de desculpa. — Você vai se sentir melhor rapidinho, está bem? Quer que eu vá embora?


— Não.


Aquilo fez com que eu me sentisse muito bem, até que ele acrescentou:


— Eles podem voltar, e eu não estou em condições de reagir ainda.


Sua voz fria era desigual, mas eu não podia dizer com certeza se o ouvira ofegar.


Fiz careta, e enquanto ele se recuperava, tomei algumas precauções. Sentei-me de costas para ele, dando-lhe alguma privacidade. Sei como é desagradável ter alguém nos olhando fixo quando estamos feridos. Eu me agachei no chão, mantendo um olho vigilante no estacionamento. Vários carros saíram, e outros chegaram, mas nenhum veio até nós pelo lado do mato. Pelo movimento do ar em torno de mim, percebi quando o vampiro se levantou.


Ele não falou de imediato. Eu virei minha cabeça para a esquerda e olhei para ele. O vampiro estava mais perto do que eu pensava. Seus grandes olhos negros olhavam bem dentro dos meus. Seus caninos estavam retraídos; fiquei um pouco desapontada com isso.


— Obrigado — ele disse friamente.


Portanto, não estava lá muito empolgado por ter sido salvo por uma mulher. Macho típico.


Já que ele estava sendo tão ingrato, achei que podia fazer algo bem grosseiro, também, e decidi ouvir o que ele pensava, abrindo minha mente por completo para a escuta.


E ouvi... absolutamente nada.


— Oh — eu disse, ouvindo o choque em minha própria voz, mal sabendo o que dizia. — Eu não posso ouvir você.


— Obrigado! — o vampiro disse, mexendo seus lábios com exagero.


— Não... Ouvir você falar eu posso, mas não... — e, na minha excitação, fiz algo que comumente nunca faria, porque era atrevido, e pessoal, e revelava o quanto eu era esquisita.


Virei-me para ele por completo e pus minhas mãos nos dois lados de seu rosto lívido, e olhei-o com firmeza. Eu o focalizei com todas as minhas forças. Nada. Era como alguém que tivesse sempre ouvido rádio, selecionando as estações que queria, e que de repente ligasse numa faixa que não podia captar.


Era o próprio paraíso.


Seus olhos iam ficando maiores e mais escuros, embora ele se mantivesse absolutamente imóvel.


— Oh, me desculpe — eu disse, com uma voz embargada.


Afastei minhas mãos e voltei a fazer vigilância do estacionamento. Comecei a tagarelar sobre Mack e Denise, pensando o tempo todo como seria maravilhoso ter um companheiro que eu não pudesse escutar a menos que ele quisesse falar em voz alta. Como seria belo seu silêncio.


— ...então, pensei que seria melhor eu sair lá do bar para ver como você estava — eu concluí, sem ter idéia do que acabara de dizer.


— Você veio aqui para me salvar. Foi corajoso da sua parte — ele disse numa voz tão sedutora que teria feito DeeAnne tirar tremendo suas calcinhas vermelhas de náilon.


— Vamos esquecer isso — eu disse com acidez, pondo a coisa bem terra-a-terra abruptamente.


— Você não tem medo de ficar sozinha com um vampiro faminto? — ele perguntou, com alguma coisa ao mesmo tempo travessa e ameaçadora em sua voz.


— Nenhum.


— Você está supondo que, já que veio aqui para me salvar, está segura agora, que eu carrego um pouquinho de sentimentalismo depois desses anos todos? Vampiros geralmente ferram aqueles que confiam neles. Não temos valores humanos, como você sabe.


— Um monte de seres humanos ferram os que confiam neles — eu repliquei. Posso ser muito prática. — Não sou uma tola completa.


Ergui meu braço e virei meu pescoço. Enquanto ele se recuperava, eu passara as correntes do Casal Rato em volta deles.


Ele tremeu visivelmente.


— Mas vejo uma artéria suculenta em sua virilha — ele disse, depois de uma pausa para juntar as idéias e se fortalecer, a voz tão escorregadia como a de uma serpente que deslizasse.


— Não me venha com sujeiras — eu disse a ele. — Não vou ouvir esse papo.


Novamente olhamos um para o outro em silêncio. Tinha medo de nunca mais revê-lo; afinal, sua primeira visita ao bar do Merlotte não tinha sido exatamente bem-sucedida. Por isso, eu tentava absorver todos os detalhes da situação que pudesse; guardaria esse encontro como um tesouro e o lembraria por muito, muito tempo. Era raro, era um prêmio. Eu queria tocar a sua pele outra vez. Não me lembrava bem como ela era. Mas isso seria ultrapassar certo código de boas maneiras, e também seria talvez estimulá-lo a exercer manobras de sedução novamente.


— Você gostaria de beber o sangue que eles recolheram? — ele perguntou inesperadamente. — Seria uma maneira de demonstrar minha gratidão a você.


Ele apontou para os frascos tamponados que estavam jogados no asfalto:


— Meu sangue pode melhorar sua vida sexual e sua saúde.


— Sou sadia como um cavalo — eu disse a ele, francamente. — E não tenho vida sexual de que possa falar. Faça com o sangue o que você achar melhor.


— Você poderia vendê-lo — ele sugeriu, mas eu pensei que ele estava apenas querendo ver o que eu diria a respeito do assunto.


— Eu nem tocaria nele — disse, ofendida.


— Você é diferente — ele disse. — Que espécie de coisa você é?


Ele parecia estar revolvendo em sua cabeça uma lista de possibilidades para detectar quem eu era, pelo jeito como olhava para mim. Para minha satisfação, eu não conseguia escutar nenhuma delas através de meu poder.


— Bem. Sou Sookie Stackhouse, uma garçonete — eu disse a ele. — Qual é seu nome? — achei que poderia perguntar a ele sem parecer abusada.


— Bill — ele disse.


Antes que eu pudesse me conter, caí de costas com uma risada.


— O vampiro Bill! — eu disse. — Pensei que poderia ser Antoine, ou Basil, ou Langford! Mas, Bill!


Há muito tempo eu não ria tanto.


— Bem, até mais, Bill. Tenho que voltar pro trabalho.


Senti que o riso tenso retornava, ao pensar que tinha que voltar ao bar de Merlotte. Pus a mão no ombro de Bill e me levantei. Estava pesada como pedra, e fiquei em pé tão rapidamente que tive que me segurar para não cair. Examinei minhas meias para me certificar de que estavam no lugar exato, e olhei meu uniforme de alto a baixo para ver se havia sinais e rasgos resultantes da briga com os Ratos. Tirei o pó de minhas nádegas, já que estivera sentada no chão sujo, e acenei para Bill ao começar a me afastar em direção ao estacionamento.


Tinha sido uma noite estimulante, cheia de alimento para reflexão. Senti-me tão animada quanto meu sorriso quando me pus a refletir sobre isso.


Mas Jason ficaria fulo da vida pela perda da corrente.










Depois do trabalho daquela noite, peguei o carro e fui para casa, que fica a apenas seis quilômetros e meio ao sul do bar. Jason havia saído (e DeeAnne também) quando eu voltara ao serviço, e isso fora outra coisa boa daquela noite. Eu estava repassando a noite mentalmente enquanto guiava meu carro em direção à casa de minha avó, onde eu morava. É logo antes do cemitério de Tall Pines, que fica ao fim de uma estreita estrada municipal de duas pistas. Meu tataravô tinha erguido a casa, e ele tinha idéias bem próprias sobre as questões de privacidade, portanto, para chegar a ela, você tinha que desviar-se da estrada municipal pegando um atalho único, percorrer o interior de algumas florestas, e aí parar numa clareira onde a casa ficava.


Claro que ela não é nenhum marco histórico, já que a maioria de seus compartimentos antigos foi demolida e refeita ao longo dos anos, e claro que ela conta com eletricidade, encanamento e isolação, todos esses confortos modernos. Mas ainda tem um telhado de zinco que reluz, ofuscante, nos dias de sol. Quando o teto precisou ser refeito, quis colocar nele telhas comuns, mas minha avó não permitiu. Embora eu estivesse pagando pela reforma, a casa é dela; portanto, naturalmente, continuou sendo de zinco.


Histórica ou não, vivo naquela casa desde os 7 anos, e eu a visitava muito antes disso, portanto, eu a amo. Era apenas o lar de uma velha e grande família, grande demais para Vovó e eu, suponho. Tinha uma frente ampla, coberta por uma varanda protegida por biombo, e era pintada de branco, sendo Vovó a completa tradicionalista que era. Entrei pela grande sala de visitas, cheia de uma mobília surrada que nos servia, e desci o corredor em direção ao quarto à esquerda, que era o maior da casa.


Adele Hale Stackhouse, minha avó, estava recostada em sua cama de cabeceira alta, com quase um milhão de travesseiros almofadando seus ombros descarnados. Ela estava usando uma camisola de noite com longas mangas, mesmo que a noite de primavera fosse bem quente, e a lâmpada ao lado da cabeceira ainda estava acesa. Havia um livro em seu colo.


— Olá — eu disse.


— Olá, querida.


Minha avó é muito pequena e muito velha, mas seu cabelo é ainda abundante, e tão branco que quase tem o mais apagado dos matizes de verde. Ela o usa liso e preso durante o dia, mas à noite costuma deixá-lo solto ou trançado. Eu olhei para a capa do livro em seu colo.


— A senhora está lendo Danielle Steele outra vez?


— Oh, essa mulher sabe contar uma história.


Os grandes prazeres de minha avó eram ler Danielle Steele, ver suas telenovelas (que ela chamava de suas “estórias”) e freqüentar reuniões dos vários clubes a que pertencera, ao que parecia, em toda a sua vida adulta. Seus clubes favoritos eram os dos Descendentes dos Mortos Gloriosos e da Sociedade de Jardinagem de Bon Temps.


— Não está pensando no que foi que aconteceu comigo nesta noite? — eu lhe perguntei.


— Quê? Arranjou um namorado?


— Não — eu disse, esforçando-me por manter um sorriso no rosto. — Um vampiro apareceu lá no bar.


— Ooh, ele tinha caninos afiados?


Eu os tinha visto brilhando à luz das lâmpadas do estacionamento quando os Ratos estavam drenando-o, mas não havia necessidade de descrever a coisa para a Vovó.


— Sim, mas estavam contraídos.


— Um vampiro bem aqui em Bon Temps. — Vovó estava tão encantada quanto excitada. — Ele mordeu alguém no bar?


— Oh, não, Vó! Ele só ficou numa mesa lá e tomou um copo de vinho tinto. Bem, ele pediu um, mas não tomou. Eu acho que só queria um pouco de companhia.


— Fico pensando onde ele estará morando.


— Ele não parecia do tipo que conta uma coisa dessas para alguém.


— Não — Vovó disse, refletindo um momento sobre aquilo. — Acho que não. Você gostou dele?


Isso sim era uma pergunta difícil. Fiquei pensando nela um pouco.


— Não sei. Ele era realmente interessante — eu disse, com cautela.


— Eu gostaria mesmo de conhecê-lo. — Eu não me surpreendia com Vovó dizendo isso, porque ela realmente adorava novidades tanto quanto eu. Ela não era um desses reacionários que tinham concluído que os vampiros eram danações por vontade própria. — Mas é melhor eu dormir agora. Eu estava só esperando você chegar para apagar a minha luz.


Eu me curvei para dar um beijo na Vovó, e disse:


— Durma bem.


Encostei sua porta à saída, e ouvi o som da lâmpada que ela apagou. Minha gata, Tina, surgiu do lugar qualquer em que estivesse dormindo para se esfregar em minhas pernas, e eu a peguei e a afaguei um pouquinho, antes de colocá-la do lado de fora, como era hábito de toda noite. Dei uma olhadinha no relógio de parede. Eram quase duas da madrugada, e a cama me chamava.


Meu quarto era bem em frente ao quarto de Vovó. Quando o usei pela primeira vez, depois que meus pais morreram, Vovó trouxe a mobília da minha casa paterna, para que eu me sentisse mais à vontade. E ali continuava ela, a simples cama e o toucador pintados de branco, e a pequena cômoda.


Acendi minha própria luz, fechei a porta e comecei a me despir. Eu tinha pelo menos cinco pares de calções pretos e muitas, muitas camisetas brancas, já que elas tendiam a ficar manchadas tão facilmente. Sem contar os muitos pares de meias brancas que estavam enrolados em minha gaveta. Portanto, eu não tinha que fazer uma limpeza nessa noite. Eu estava cansada demais para tomar banho. Mas, escovei meus dentes e limpei a maquiagem do meu rosto, passei alguma mistura nutriente de pele, e soltei o meu cabelo.


Arrastei-me para a cama usando minha camiseta favorita de dormir, com estampa de Mickey Mouse, que quase chega a meus pés. Deitei de lado, como sempre, e desfrutei do silêncio do quarto. A mente de todo mundo está quase apagada nas horas mortas da noite, e as vibrações se vão, e as intrusões não têm que ser repelidas. Dispondo de tal paz, só tive tempo para pensar nos olhos escuros do vampiro, e depois caí num sono profundo de exaustão.










No dia seguinte, pela hora do almoço, eu estava em minha espreguiçadeira de alumínio dobrável no pátio da frente, pegando um pouco de bronzeado. Eu vestia meu biquíni branco sem alça favorito, que estava um pouco mais folgado que no último verão, por isso eu estava tão satisfeita quanto excitada.


Foi quando ouvi um veículo chegando pela estrada, e a picape de Jason com seus ornamentos cor-de-rosa e água-marinha irrompeu pouco além dos meus pés.


Jason pulou do volante — será que eu disse que a picape era daquelas com pneus altos? — para se aproximar de mim. Estava usando suas roupas habituais de trabalho, calças e camisa caqui, e trazia sua faca na bainha, como a maior parte dos trabalhadores da estrada municipal. Só pelo modo como vinha andando, sabia que ele estava furioso.


Coloquei meus óculos escuros.


— Por que você não me contou que bateu nos Rattrays ontem à noite? — Meu irmão jogou-se sobre a cadeira de alumínio do pátio ao lado de minha espreguiçadeira. — Onde está a Vovó? — ele perguntou, atrasado.


— Pendurando roupa lavada — eu disse.


Vovó usava a secadora de vez em quando, mas ela gostava na verdade era de pendurar as roupas úmidas ao sol. Claro que o varal ficava na parte dos fundos, onde os varais costumam ficar.


— Ela está preparando bife à moda da terra e batatas-doces e feijões verdes que guardou do ano passado, para o almoço — acrescentei, sabendo que isso iria distrair um pouco a atenção de Jason. Esperava que a Vovó ficasse lá nos fundos. Não queria que ela ouvisse essa conversa. — Fale baixo — eu o alertei.


— Rene Leiner não conseguiu esperar até eu chegar ao trabalho hoje cedo para vir me contar. Ele dirigia à frente do trailer dos Rattray ontem à noite para comprar alguma erva, e Denise dirigia como se quisesse matar alguém. Rene disse que ele quase foi morto, de tão louca de raiva que ela estava. Precisou que ele e Denise colocassem Mack no trailer, e eles levaram o cara para o hospital em Monroe. — Jason olhava para mim, ferozmente, de modo acusador.


— Rene contou a você que Mack veio para cima de mim armado com uma faca? — eu perguntei, concluindo que atacar seria a melhor maneira de lidar com isso. Eu percebi que a bronca de Jason era em grande parte devido ao fato de que soubera a notícia pela boca de uma outra pessoa.


— Se Denise contou a Rene, ele não me disse isso — Jason disse lentamente, e vi seu rosto bonito escurecer de raiva. — Ele foi para cima de você com uma faca?


— Sim, não fiz mais que me defender — eu disse, bem prosaicamente. — E ele levou sua corrente.


Tudo isso era verdade, mesmo que um pouco enviesada.


— Eu voltei para lhe contar — continuei —, mas no momento em que cheguei ao bar, você tinha saído com a DeeAnne, e já que eu estava bem, não parecia necessário ir atrás de você. Eu sabia que você se sentiria obrigado a ir atrás dele se eu lhe contasse sobre a faca — acrescentei, diplomaticamente. Havia um monte de verdade a mais nessa história, já que Jason dá a vida por uma briga.


— Que diabo você estava fazendo lá? — ele perguntou, mas tinha relaxado, e eu sabia que estava engolindo a minha explicação.


— Você sabia que, além de vender drogas, os Ratos são drenadores de vampiros?


Agora ele estava fascinado.


— Não... É mesmo?


— Bem, um de meus fregueses ontem à noite era um vampiro, e eles estavam secando o cara no estacionamento do bar do Merlotte! Eu não pude suportar aquilo.


— Tem um vampiro aqui em Bon Temps?


— Tem, sim. Mesmo que você não queira um vampiro para seu melhor amigo, você não pode deixar gente escrota como os Ratos tirarem sangue dele. Não é como tirar gasolina de um carro. E eles iam deixar o cara lá no mato para morrer.


Embora os Ratos não tivessem me revelado as suas intenções, eu apostava que fariam isso. Mesmo que eles o tivessem posto num lugar fechado para que sobrevivesse à luz do dia, um vampiro drenado levava no mínimo umas vinte horas para se recuperar, ao menos era o que alguém dissera lá no programa da Oprah. E isso se um outro vampiro cuidasse dele.


— O vampiro estava no bar quando eu também estava lá? — Jason perguntou, fascinado.


— Ã-hã. O cara de cabelos escuros que estava sentado com os Ratos.


Jason riu de meu epíteto para os Rattrays. Mas ele não queria deixar de falar da noite anterior, ainda.


— Como você sabia que era um vampiro? — ele perguntou, mas quando olhou para mim, notei que ele preferia ter mordido a língua a fazer essa pergunta.


— Eu sabia, simplesmente — disse, em minha voz mais indiferente.


— Certo.


E, depois, ficamos os dois num silêncio embaraçoso.


— Homulka não tem um vampiro — Jason disse, pensativamente.


Ergueu seu rosto para apanhar o sol, e eu percebi que tínhamos saído daquele terreno perigoso.


— É verdade — eu concordei.


Homulka era a cidade que Bon Temps amava odiar. Tínhamos sido rivais no futebol, no basquetebol e na significação histórica das gerações.


— Nem Roedale tem — Vovó disse atrás de nós, e eu e Jason nos sobressaltamos.


Em reconhecimento a Jason, digo que ele se levanta e dá um abraço toda vez que vê a avó.


— Vó, a senhora tem comida o bastante no forno para mim?


— Para você e mais dois — Vovó disse. Nossa avó sorria para Jason. Ela não era cega aos defeitos dele (ou aos meus), mas o amava. — Acabo de receber um telefonema de Everlee Mason. Ela estava me contando que você ficou grudado na DeeAnne ontem à noite.


— Cara, oh, cara, a gente não pode fazer nada nesta cidade sem ser visto — Jason disse, mas ele não estava realmente irritado.


— Aquela DeeAnne — Vovó disse, num tom de advertência, enquanto entrávamos todos em casa —, toda vez que alguém me fala dela, está grávida. Você tome cuidado para ela não engravidar de você, ou vai pagar por isso pelo resto de sua vida. Claro, deve ser a única maneira de eu conseguir alguns bisnetos!


Vovó já estava com a comida pronta na mesa, portanto, assim que Jason tirou o chapéu, nós nos sentamos e fizemos a oração de graças. Então, Vovó e Jason começaram a fofocar um com o outro (embora chamassem a coisa de “ficar informados”) sobre o pessoal de nossa pequena cidade e paróquia. Meu irmão trabalhava para o Estado, supervisionando equipes de trabalhadores de estrada. Parecia-me que Jason passava o dia dirigindo uma picape estatal, cronometrando o trabalho, e pelas noites zoava com sua própria picape pela cidade. Rene era um dos trabalhadores daquelas turmas que Jason supervisionava, e os dois tinham freqüentado a escola juntos. Eles também circulavam bastante pela cidade com Hoyt Fortenberry.


— Sookie, eu tive que recolocar o aquecedor de água quente na casa — Jason disse de repente.


Ele mora na velha casa dos meus pais, aquela em que vivíamos quando eles morreram numa inundação causada por chuva repentina. Passamos a viver com a Vovó depois dessa tragédia, mas, quando Jason terminou seus dois anos de colégio e foi trabalhar para o Estado, ele voltou a morar na casa, que, no papel, é metade minha.


— Você precisa de algum dinheiro pra pagar isso? — perguntei.


— Não, eu tenho.


Nós dois temos cada qual o seu salário, mas temos também uma pequena renda proveniente de um fundo estabelecido quando um poço de petróleo foi perfurado na propriedade de meus pais. Ele secou em poucos anos, mas meus pais e a Vovó fizeram prudentemente com que o dinheiro fosse investido. Poupou-nos de uma porção de sofrimentos, aquele reforço. Eu não sei como Vovó poderia ter-nos criado se aquele dinheiro não existisse. Ela estava determinada a não vender nenhum pedaço de terra, mas sua renda própria não vai além daquela fornecida pela previdência social. Essa é a razão pela qual não compro um apartamento. Se eu fizer compras morando com ela, isso lhe parecerá aceitável; mas se fizer compras, trouxer à sua casa e deixá-las na sua mesa e voltar para o meu próprio lar, parecerá caridade e a deixará fula da vida.


— Que tipo de aquecedor você adquiriu? — perguntei a Jason, só para mostrar interesse.


Ele estava ansioso por me contar aquilo; Jason é fanático por eletrodomésticos, e ele queria descrever sua pesquisa de compras do novo aquecedor de água em detalhes. Eu o ouvi com o máximo de atenção que pude dispensar.


De repente, ele interrompeu a descrição.


— Ei, Sook, você se lembra da Maudette Pickens?


— Claro — eu disse, surpresa. — Nós nos formamos na mesma turma.


— Alguém matou Maudette em seu apartamento a noite passada.


Vovó e eu ficamos de orelhas em pé.


— Quando? — Vovó perguntou, espantada por ainda não ter sabido a novidade.


— Eles acabaram de achá-la agora de manhãzinha em seu quarto. Seu chefe tentou telefonar para saber por que ela não tinha aparecido no serviço ontem e hoje e não teve resposta, daí foi para lá e acordou o zelador, e eles arrombaram o lugar. Vocês sabem que o apartamento dela é bem em frente ao de DeeAnne?


Bon Temps conta com apenas um complexo de apartamentos digno de nota, um agrupamento em forma de U com três edifícios de dois andares, portanto, sabíamos exatamente o que a revelação de Jason significava.


— Ela foi assassinada lá mesmo?


Eu me sentia mal. Lembrava-me claramente de Maudette. Ela tinha queixo proeminente e bunda quadrada, cabelos bem pretos e ombros robustos. Ela sempre foi meio “devagar”, sem inteligência ou ambição. Pensei que me lembrava bem dela trabalhando no Grabbit Kwik, um posto de gasolina com uma loja de conveniência.


— Sim, ela estava trabalhando lá faz pelo menos um ano, eu acho — Jason confirmou.


— Como foi que isso aconteceu? — Minha avó tinha aquela expressão ansiosa, vê-se-conta-logo, com que as boas pessoas pedem notícias ruins.


— Ela tinha umas marcas de vampiro nas...han...nas coxas — meu irmão disse, cabisbaixo, desviando os olhos para o prato. — Mas não foi isso que a matou. Ela foi estrangulada. DeeAnne me contou que Maudette gostava de freqüentar aquele bar de vampiros em Shreveport quando tinha uns dias de folga, daí, deve ter sido lá que ela pegou as marcas. Pode não ter sido o vampiro amigo de Sookie.


— Maudette era uma vampiróíila? — Eu me sentia enjoada, imaginando a lenta, gordinha Maudette metida nos trajes negros exóticos que a turma dos vampirófilos gostava de usar.


— Que negócio é esse? — perguntou Vovó.


Ela devia ter perdido o programa de Sally-Jessy no dia em que o fenômeno fora abordado.


— São homens e mulheres que andam por aí com os vampiros e gostam de ser mordidos. Tietes de vampiro. Eles não chegam a durar muito, eu acho, porque querem ser mordidos demais, e cedo ou tarde encontram um que morde além da medida.


— Mas uma mordida não matou a Maudette. — Vovó queria ter certeza de que tinha entendido a coisa direito.


— Não mesmo, foi estrangulamento — Jason estava terminando o seu almoço.


— Você não põe gasolina sempre lá no posto Grabbit? — perguntei.


— Claro. Eu e um monte de gente.


— E você já não andou saindo com a Maudette, não? — Vovó perguntou.


— Bem, de certo modo... — Jason disse, cautelosamente.


Interpretei essa resposta como querendo dizer que ele levava Maudette para a cama quando não encontrava coisa melhor.


— Espero que o xerife não queira interrogar você — Vovó disse, balançando a cabeça como se fazer o sinal de não tornasse a coisa menos provável.


— O quê? — Jason estava ficando vermelho, parecendo defensivo.


— Você vê Maudette no posto toda vez que vai lá abastecer, você sai com ela “de certo modo”, e daí ela aparece morta num apartamento que você já conhece bem — resumi.


Não era muita prova, mas era alguma coisa, e havia tão poucos homicídios misteriosos em Bon Temps que eu achava que todas as pedras acabariam sendo viradas na investigação da morte de Maudette.


— Não sou o único que enche o tanque lá. Muitos caras passam pelo posto, e todos eles conhecem Maudette.


— Sim, mas em que sentido? — Vovó perguntou rudemente. — Ela não era uma prostituta, era? Então, ela devia falar naturalmente dos sujeitos com quem saía.


— Ela só gostava de se divertir, não era uma profissional. — Era bom da parte de Jason assumir a defesa de Maudette, considerando o que eu já sabia de sua natureza egoísta. Comecei a pensar melhor a respeito de meu grande irmão. — Acho que ela era um pouquinho solitária — ele acrescentou.


Jason olhou para nós duas, então, e viu que estávamos surpresas e comovidas.


— Falando de prostitutas — ele disse, impetuosamente —, tem uma lá em Monroe que é especializada em vampiros. Ela deixa um cara vigiando com uma estaca em caso de algum fugir. Ela bebe sangue sintético para manter seu fornecimento de sangue em dia.


Foi uma bela mudança de assunto, e então Vovó e eu tentamos pensar em alguma pergunta que pudéssemos fazer sem parecermos indecentes.


— Quanto será que ela cobra? — aventei, e quando ele nos falou dos números sobre os quais fora informado, nós duas engasgamos.


Desde que tínhamos desviado do tópico do assassinato de Maudette, o almoço transcorreu como sempre, com Jason olhando para seu relógio de pulso e exclamando que tinha que sair bem na hora em que era preciso lavar a louça.


Mas a mente de Vovó ficou ainda divagando sobre a questão dos vampiros, como descobri depois. Ela entrou em meu quarto mais tarde, quando eu estava me maquiando para sair para trabalhar.


— Quantos anos você calcula que o vampiro, esse que você conheceu, pode ter?


— Não tenho idéia, Vó.


Eu estava pondo o meu rimei, olhando com os olhos arregalados e tentando me manter imóvel para que o rimei não caísse neles, portanto, minha voz soou esquisita, como se eu estivesse fazendo um teste para um filme de horror.


— Você supõe que... ele poderá lembrar-se da Guerra?


Eu não precisava perguntar a que Guerra ela se referia. Afinal, Vovó era um membro privilegiado do clube dos Descendentes dos Mortos Gloriosos.


— Pode ser que sim — eu disse, virando meu rosto de um lado para o outro para ter certeza de que meu blush estava no lugar.


— Você acha que ele poderia vir aqui pra conversar sobre isso com a gente? Poderíamos marcar um encontro especial.


— À noite — avisei-a.


— Oh. Claro, teria que ser à noite.


Os Descendentes habitualmente se encontravam ao meio-dia na biblioteca e levavam o almoço em lancheiras.


Refleti sobre aquilo. Seria completamente grosseiro da minha parte dizer ao vampiro que ele tinha a obrigação de conversar com o clube de Vovó porque eu tinha salvo seu sangue dos Drenadores, mas quem sabe ele próprio não se ofereceria, se eu lhe desse umas indiretas? Eu não gostava da idéia, mas a poria em prática em consideração à minha avó.


— Vou perguntar a ele na próxima vez que aparecer — prometi.


— Será que, se não der, ele pode pelo menos vir conversar comigo e eu gravar as suas recordações? — Vovó disse. Eu ouvia a sua mente fazendo clique com a idéia do trunfo sensacional que aquilo seria para ela. — Seria tão interessante para os outros membros do clube — ela disse, caritativamente.


Eu sufoquei um impulso de cair na risada.


— Vou sugerir isso a ele — eu disse. — Veremos.


Quando eu saí, Vovó estava claramente já imaginando seus louros.






* * *






Eu não havia pensado na hipótese de Rene Lenier ter procurado Sam para contar a história da briga no estacionamento. No entanto, ele era um fuxiqueiro aplicado. Quando cheguei ao trabalho naquela tarde, presumi que a agitação que senti pelo ar era devido ao assassinato de Maudette. Descobri que não era bem assim.


Sam empurrou-me para a despensa bem no momento em que eu acabara de entrar. Ele estava quicando de raiva e me deu uma bronca.


Sam nunca tinha ficado bravo comigo, e rapidamente fiquei à beira de despencar a chorar.


— E se você acha que um freguês não está a salvo, me informe, e eu é que cuidarei do assunto, não você — ele estava dizendo pela sexta vez, quando eu finalmente percebi que ele temera por minha vida.


Captei essa idéia dentro dele antes de tomar a firme decisão de não “ouvi-lo”. Escutar os pensamentos de um chefe sempre leva ao desastre.


Nunca me ocorrera pedir a Sam — ou quem mais que fosse — alguma espécie de ajuda.


— E se você acha que alguém está sendo agredido em nosso estacionamento, seu próximo passo deve ser chamar a polícia, e não ficar lá parada feito uma sentinela — Sam bufou.


Seu amável rosto, sempre corado, estava mais vermelho que nunca, e seus cabelos de caracóis dourados pareciam não ter sido penteados.


— O.k. — eu disse, tentando manter minha voz impassível e mesmo meus olhos bem abertos para que as lágrimas não escorressem. — Você vai me demitir?


— Não! Não! — ele exclamou, parecendo ainda mais furioso. — Eu não quero perder você! — Ele agarrou meus ombros e me deu uma pequena sacudida.


Daí, ficou a olhar para mim com aqueles grandes, intensos olhos azuis, e eu senti uma onda de calor emanando dele. Qualquer toque acelera minha percepção extra, tornando obrigatório que eu ouça o que a pessoa que me toca está pensando. Olhei bem diretamente em seus olhos por um longo momento, e depois fiquei em alerta, e pulei para trás enquanto suas mãos se afastavam.


Fiz um giro e deixei a despensa, assustada.


Tinha percebido duas coisas desconcertantes. Sam me desejava; e eu não podia ouvir seus pensamentos com tanta clareza quanto ouço os de outras pessoas. Eu recebia ondas de impressões do que ele estava sentindo, mas não pensamentos. Era como usar um anel que registrasse as emoções, mais do que recebê-las como um fax.


Daí, o que fiz com as duas partes da informação?


Absolutamente nada.


Nunca tinha olhado para Sam como um homem que se levasse para a cama — ou ao menos que eu levasse — por uma porção de motivos. Mas o mais simples deles era que eu nunca olhava para ninguém dessa maneira, não porque eu não tenha hormônios — cara, como eu tenho hormônios! — mas eles estão constantemente reprimidos porque sexo, para mim, é um desastre. Você já imaginou saber tudo o que seu parceiro sexual está pensando naquele momento? Certo. Algo assim do tipo “Nossa, olha só essa mancha na pele... a bunda dela é meio grande... gostaria que ela se mexesse para a direita um pouco mais... por que ela não entende o lance e...?” Bem, você captou a idéia. Dá uma esfriada nas emoções, acredite. E, durante o sexo, simplesmente não há meio de manter a guarda mental em atenção.


Outro motivo é que gosto de Sam como chefe, e gosto de meu emprego, que me mantém fora de casa e ativa e remunerada de tal modo que não vou me transformar na reclusa que minha avó teme que eu me torne. Trabalhar num escritório é difícil para mim, e o colégio foi simplesmente impossível por causa da pesada concentração que eu tinha que fazer. Simplesmente me exauria.


Portanto, imediatamente, quis refletir sobre o ímpeto de desejo que eu sentira brotar nele. Não era como se ele me passasse uma cantada verbal ou me atirasse no chão da despensa. Eu senti seus sentimentos, e poderia ignorá-los, se escolhesse assim. Eu apreciava a delicadeza dessa questão, e me perguntava se Sam não teria me tocado de propósito, se na verdade não saberia o que eu era.


Tomei cuidado para não ficar sozinha com ele, mas tenho que admitir que fiquei abalada naquela noite.










As duas noites seguintes foram melhores. Voltamos à nossa confortável relação de amizade. Eu estava aliviada. Eu estava desapontada. Eu estava pra lá de atarefada, correndo de um lado para outro, desde que o assassinato de Maudette incrementou o movimento comercial do bar. Toda espécie de boato se espalhava por Bon Temps, e a equipe do jornal de Shreveport dera uma pequena nota sobre a horrível morte de Maudette Pickens. Embora eu não tivesse comparecido ao funeral, minha avó foi, e disse que a igreja estava superlotada. Pobre Maudette sem graça, com suas coxas mordidas, ficou mais interessante morta do que fora em vida.


Eu estava para tirar dois dias de folga, e me preocupava com perder o contato com o vampiro, Bill. Eu precisava retransmitir o pedido de minha avó. Ele não havia retornado ao bar, e comecei a me perguntar se retornaria mesmo.


Mack e Denise não tinham voltado ao bar do Merlotte tampouco, mas Rene Lenier e Hoyt Fortenberry deixaram claro que eles tinham me ameaçado com coisas horríveis. Não posso dizer que estava seriamente alarmada. Criminosos desclassificados como os Ratos vagavam pela rodovias e parques nacionais da América, sem inteligência ou moral suficientes para estabelecerem uma existência produtiva. Eles nunca deixavam uma marca positiva no mundo, ou chegavam a formar um montinho relevante, a meu ver. E dei de ombros para as advertências de Rene.


Mas ele adorava retransmiti-las. Rene Lenier era pequeno como Sam, e tinha uma cabeça cheia de cabelo espetado, negro, com mechas cinzentas. Rene vinha ao bar para beber uma cerveja e visitar Arlene porque (como ele ficava feliz de dizer a qualquer um que lá estivesse) ela era sua ex-esposa favorita. Ele tivera três. Hoyt Fortenberry era mais enigmático que Rene. Ele não era nem sombrio nem amável, nem grande nem pequeno. Parecia sempre animado e sempre dava gorjetas decentes. Admirava meu irmão Jason muito mais do que este merecia, em minha opinião.


Fiquei feliz por Rene e Hoyt não estarem lá na noite em que o vampiro retornou.


Ele sentou-se à mesma mesa.


Agora que o vampiro estava realmente diante de mim, eu me senti um pouco inibida. Descobri que havia me esquecido do quase imperceptível brilho de sua pele. Eu exagerara na avaliação de sua estatura e das linhas claramente definidas de sua boca.


— Em que posso servi-lo? — eu lhe perguntei.


Ele ergueu os olhos em minha direção, e eu percebi que havia me esquecido, também, da profundeza de seus olhos. Ele não sorriu nem piscou; estava tão imóvel. Pela segunda vez, eu relaxei com seu silêncio. Quando eu baixava minha guarda, sentia meu rosto relaxar. Era tão bom como ser massageada (estou supondo).


— O que você é? — ele me perguntou. Era a segunda vez que ele me fazia essa pergunta.


— Sou uma garçonete — eu disse, de novo fazendo de conta que não entendera direito a pergunta. Eu sentia meu sorriso se repuxar novamente. Meu pouquinho de tranqüilidade desaparecera.


— Vinho tinto — ele pediu, e, se estava desapontado, não era possível detectar pela sua voz.


— Claro — eu disse. — O sangue sintético deve chegar no caminhão de transporte de amanhã. Ouça, posso conversar com você depois do serviço? Tenho um favor a lhe pedir.


— É claro. Tenho uma dívida com você. — E era bem claro que ele não se sentia satisfeito por isso.


— Não é um favor para mim! — Eu estava ficando zangada. — É para a minha avó. Se você estiver em pé, bem, acho que você estará, quando eu sair do serviço a uma e meia, você não gostaria de encontrar-se comigo na saída dos empregados lá nos fundos do bar? — Fiz um sinal na direção mencionada, e meu rabo-de-cavalo caiu sobre meus ombros. Os olhos dele seguiram o movimento de meu cabelo.


— Ficarei encantado.


Eu não sabia se ele estava exibindo o tipo de cortesia que Vovó insistia que era o padrão dos tempos passados, ou se estava tirando um sarro de mim à moda antiga.


Resisti à tentação de mostrar ou estalar a minha língua grosseiramente para ele. Girei em meus calcanhares e marchei de volta para o bar. Quando lhe trouxe o seu vinho, ele me deu uma gorjeta de vinte por cento. Logo após, olhei para a sua mesa apenas para constatar que ele havia desaparecido. Fiquei pensando se cumpriria a sua palavra.


Arlene e Dawn saíram antes que eu estivesse pronta para ir, por uma razão ou outra; mas a razão mais forte foi que os porta-guardanapos em minha área ficaram quase vazios. Enquanto tirava minha bolsa do armário fechado do escritório de Sam, onde a guardo quando estou em serviço, eu me despedi do chefe. Eu o ouvia fazendo ruído na parte reservada aos homens, provavelmente tentando consertar o toalete estragado. Entrei no banheiro das mulheres por um segundo para examinar meu cabelo e maquiagem.


Quando cheguei lá fora, notei que Sam tinha desligado as luzes do estacionamento dos fregueses. Apenas a lâmpada de segurança do poste de eletricidade em frente ao trailer iluminava o estacionamento dos empregados. Para diversão de Arlene e Dawn, Sam tinha feito um quintalzinho e plantado pés de buxo em frente ao seu trailer, e elas estavam sempre provocando-o pelo caprichoso alinhamento de sua cerca viva.


Eu achava aquilo bonito.


Como sempre, o carro de Sam estava estacionado em frente ao seu trailer, e, por isso, meu carro era o único deixado no estacionamento.


Eu avancei, olhando para todos os lados. Nada de Bill aparecer. Fiquei surpresa com o tamanho do desapontamento que sentia. Eu na verdade tinha esperado que ele fosse cortês, mesmo que seu coração (será que ele tinha um?) não estivesse nisso.


“Talvez”, pensei sorrindo, “ele pulasse de uma árvore, ou aparecesse com um puf! em frente a mim, envolto numa capa preta com forro vermelho.” Mas, nada aconteceu. Assim, caminhei em direção ao meu carro.


Esperava por uma surpresa, mas não por aquela que tive.


Mack Rattray pulou de trás de meu carro e, num salto, se aproximou de mim o bastante para me atingir o queixo. Ele não hesitou nem um pouquinho, e eu fui parar no chão de cascalho como um saco de cimento. Soltei um grito quando caí, mas o chão tinha tirado todo o ar e alguma pele de mim, e eu estava muda, sem fôlego e desamparada. Então, vi Denise, vi-a preparar sua bota pesada para dar um chute, e tinha acabado de me enrolar como uma bola quando os Rattrays começaram a me dar pontapés.


A dor foi imediata, intensa e sem trégua. Lancei meus braços sobre meu rosto instintivamente, levando pancadas nos antebraços, nas pernas e nas costas.


Acho que tinha certeza, durante os primeiros golpes, que eles parariam e vomitariam ameaças e insultos sobre mim e depois sumiriam. Mas lembro-me do momento exato em que percebi que a verdadeira intenção deles era me matar.


Podia ficar lá, passivamente, e tomar uma surra, mas não ia ficar para ser assassinada.


Quando uma perna se aproximou, eu tomei fôlego, agarrei-a e lutei por minha vida. Eu tentava mordê-la, tentando ao menos deixar uma marca numa delas. Eu não tinha certeza nem de que perna eu estava mordendo.


Então, por detrás de mim, ouvi um rosnado. Oh, não, eles tinham trazido um cachorro, foi o que pensei no ato. O rosnado era decididamente hostil. Se eu tivesse algum controle de minhas emoções, o cabelo teria se arrepiado em meu couro cabeludo.


Levei um outro chute na espinha, e daí a surra parou.


O último pontapé tinha feito alguma coisa pavorosa em mim. Eu ouvia meu próprio resfolegar, estertoroso, e um estranho som borbulhante que parecia provir de meus próprios pulmões.


— Que diabo é aquilo? — Mack Rattray perguntou, e sua voz estava absolutamente aterrorizada.


Eu ouvi o rosnado outra vez, mais próximo, bem às minhas costas. E de uma outra direção, ouvi provir uma espécie de grunhido. Denise começou a gemer, Mack estava praguejando. Denise conseguiu puxar a perna de meu aperto, que fora ficando cada vez mais débil. Meus braços despencaram no chão. Pareciam estar além de meu controle. Embora minha visão estivesse nublada, eu conseguia ver que meu braço direito estava quebrado. Sentia meu rosto molhado. Eu tinha medo de continuar a avaliar meus ferimentos.


Mack começou a gritar, e depois foi a vez de Denise, e parecia haver toda espécie de atividade acontecendo ao redor de mim, mas eu não conseguia me mexer. A única coisa que eu via era meu braço quebrado, meus joelhos esfolados e a escuridão em torno de mim.


Um pouco depois, sobreveio o silêncio. Atrás de mim, o cachorro ganiu. Um nariz frio roçou minha orelha, e uma língua quente a lambeu. Tentei erguer a minha mão para acariciar o cão que tinha, sem dúvida alguma, salvado a minha vida, mas não consegui. Ouvi-me suspirando. O suspiro parecia vir de muito, muito longe.


Encarando o fato, eu disse:


— Estou morrendo.


Isso começou a parecer mais e mais real para mim. Os sapos e grilos que compunham a maior parte da noite tinham feito silêncio, cessando também toda a atividade e os ruídos no estacionamento, e por isso minha frágil voz saía claramente e ecoava na escuridão. Não bastasse essa estranheza, daí a pouco ouvi duas vozes.


Então, um par de joelhos cobertos por calças jeans sujas de sangue entrou em minha visão. O vampiro Bill havia se aproximado de tal modo que pude olhar direto em seu rosto. Havia manchas de sangue em sua boca, e seus caninos estavam salientes, brilhando lividamente sobre seu lábio inferior. Eu tentei sorrir para ele, mas meu rosto não conseguia se mexer direito.


— Eu vou levantar você — Bill disse. A voz soava calma.


— Morrerei se você fizer isso — sussurrei.


Ele me olhou por inteiro, cuidadosamente.


— Ainda não — ele disse, depois de ter feito a avaliação.


Embora fosse estranho, isso me fez bem; imaginei que ele já tivesse visto muitos ferimentos na vida.


— Isso vai doer — ele me avisou.


Era difícil imaginar qualquer coisa que não doesse.


Seus braços me agarraram por trás antes que eu tivesse tempo de ficar com medo. Eu gritei, mas foi um esforço débil.


— Seja breve — disse uma voz, urgentemente.


— Vamos voltar para a floresta que está fora de vista — Bill disse, embalando meu corpo junto a ele como se nada pesasse.


Será que ele ia me enterrar lá no mato, longe da vista de todo mundo? Depois de ter me resgatado dos Ratos? Eu mal me importava com isso.


Foi apenas um pequeno alívio quando ele me estendeu num tapete de agulhas de pinheiros na escuridão da floresta. A distância, eu conseguia ver o brilho da luz do estacionamento, sentia meu cabelo pingando sangue, sentia a dor de meu braço quebrado e a agonia das profundas contusões, mas a coisa mais assustadora era o que eu não sentia.


Eu não sentia minhas pernas.


Meu abdome parecia cheio, pesado. A expressão “hemorragia interna” se alojou em meus pensamentos, não importa o quanto eles estivessem bagunçados.


— Você vai morrer a menos que faça o que eu digo — Bill me disse.


— Sinto, não quero ser uma vampira — eu disse, e minha voz estava fraca e embaralhada.


— Não, você não virar uma — ele disse, com mais gentileza. — Você vai sarar. Rapidamente. Eu tenho a cura. Mas você tem que ter força de vontade.


— Então, mostre logo essa cura — murmurei. — Porque estou morrendo. — Eu conseguia sentir a pressão que a morte exercia sobre mim.


Na pequena parte de minha mente que ainda era capaz de receber sinais do mundo externo, ouvi Bill grunhir como se estivesse ferido. Então, alguma coisa foi pressionada sobre a minha boca.


— Beba — ele disse.


Tentei esticar minha língua, e consegui. Ele estava sangrando, espremendo-se para estimular o fluxo de sangue do seu pulso na direção de minha boca. Eu senti náusea. Mas eu queria viver. Forcei-me a engolir. E engolir de novo.


De repente o sangue pareceu saboroso, salgado, a substância da vida. Meu braço quebrado se curou e se ergueu, minha mão prendeu o pulso do vampiro junto à minha boca. Eu me sentia melhor a cada nova engolida. E, depois de um minuto, deixei-me levar pelo sono.


Quando despertei, estava ainda na floresta, ainda estendida no chão. Alguém estava junto a mim; era o vampiro. Eu conseguia ver seu brilho. Sentia sua língua mexendo em minha cabeça. Ele estava lambendo a ferida que havia ali. Eu não podia ter má vontade e me esquivar dele.


— Meu gosto é diferente do das outras pessoas? — perguntei.


— Sim — ele disse, numa voz grossa. — O que você é?


Era a terceira vez que ele fazia essa pergunta. Na terceira vez o feitiço pega, Vovó sempre dizia.


— Ei, não estou morta — eu disse.


Súbito me lembrei de que tinha que dar uma examinada em mim mesma para ver se estava bem. Sacudi meu braço, aquele que fora quebrado. Estava fraco, mas não estava mais despencando. Consegui sentir minhas pernas, e as sacudi, também. Respirei fundo, para experimentar, e fiquei satisfeita com a dor suave que disso resultou. Lutei para sentar-me. Aquilo se revelou um grande esforço, mas não uma impossibilidade. Lembrava-me o primeiro dia após uma febre resultante de uma pneumonia que peguei quando criança. Um dia frágil, mas abençoado. Eu tinha consciência de haver sobrevivido a algo pavoroso.


Antes que eu terminasse de me recuperar, ele pôs seus braços sob meu corpo e me carregou. Encostou-se a uma árvore. Eu me sentia muito à vontade sentada em seu colo, a minha cabeça encostada em seu peito.


— O que eu sou é uma telepata — eu disse. — Consigo ouvir os pensamentos das pessoas.


— Até os meus? — Ele parecia ter apenas curiosidade.


— Não. É por isso que eu gosto tanto de você — eu disse, flutuando num mar de róseo bem-estar. Eu que não ia me incomodar com a camuflagem de meus pensamentos.


Senti seu peito roncar conforme ele ria. A risada era um pouco enferrujada.


— Não consigo escutar você — eu disparei a falar, com a voz sonhadora. — Você não pode imaginar como isso é tranquilizador. Depois de passar a vida inteira escutando blá, blá, blá, poder finalmente ouvir... coisa nenhuma.


— Como você consegue sair com os homens? Os homens de sua idade certamente só pensam em levar você para a cama.


— Bem, eu não consigo. E, francamente, acho que, em qualquer idade, o único objetivo deles é levar mulheres para a cama. Eu não namoro. Todo mundo pensa que sou louca, você sabe, porque não posso revelar a verdade; isto é, que eu fico louca com todos aqueles pensamentos, todas aquelas cabeças. Eu tive alguns namorados depois que comecei a trabalhar no bar, uns sujeitos que não tinham ouvido falar de mim. Mas foi o mesmo de sempre. Você não pode se concentrar em ficar bem ao lado de um cara quando o escuta pensando se você tinge seu cabelo, ou pensando que sua bunda não é bonita, ou imaginando com que diabo de coisa o seu peito se parece.


Subitamente senti-me mais alerta, e percebi o quanto de mim mesma estava revelando a esta criatura.


— Peço desculpas — eu disse. — Eu não queria sobrecarregar você com meus problemas. Obrigada por me salvar dos Ratos.


— Foi falha minha eles terem uma oportunidade de chegar a você — ele disse. Senti que havia raiva bem abaixo da calma superfície de sua voz. — Se eu tivesse tido a gentileza de aparecer na hora marcada, isso não teria acontecido. Por isso eu devia a você um pouco de meu sangue. Devia a você a cura.


— Eles estão mortos? — Para meu embaraço, minha voz soava histérica.


— Oh, sim.


Engoli em seco. Não podia achar ruim que o mundo estivesse livre dos Ratos. Mas eu tinha que encarar a realidade, não podia me esquivar à percepção de que estava sentada bem ao lado de um assassino. No entanto, eu estava tão feliz por ficar ali, com os braços dele me envolvendo...


— Eu devia estar preocupada com isso, mas não estou — eu disse, antes que percebesse o que estava dizendo. Senti aquela risada enferrujada roncar no peito dele novamente.


Eu tinha que me esforçar por recompor meus pensamentos. Embora estivesse miraculosamente recuperada da surra do ponto de vista físico, eu me sentia um pouco confusa, mentalmente falando.


— Minha avó está mesmo ansiosa por saber quantos anos você tem — eu disse, de um modo hesitante.


Eu não sabia o quanto haveria de pessoal em fazer uma pergunta dessas a um vampiro. O vampiro em questão estava acariciando minhas costas como se eu fosse uma filhotinha de gato.


— Eu me transformei em vampiro em 1870, quando tinha 30 anos humanos.


Ergui meus olhos para ele; seu rosto brilhante estava inexpressivo, seus olhos eram poços de escuridão no meio da floresta negra.


— Você lutou na Guerra?


— Sim.


— Tenho a impressão de que você vai ficar fulo da vida. Mas minha avó e seu clube ficariam tão felizes se você revelasse a eles um pouquinho sobre a Guerra, sobre o que ela realmente foi.


— Clube?


— Ela pertence aos Descendentes dos Mortos Gloriosos.


— Mortos gloriosos. — A voz do vampiro era inaudível, mas eu conseguia notar, com bastante segurança, que ele não estava feliz.


— Ouça, você não terá que contar nada sobre moscas varejeiras, as infecções e a fome — eu disse. — Eles têm sua própria imagem da Guerra, e embora não sejam estúpidos, pois atravessaram outros conflitos, gostariam de saber a maneira como as pessoas viviam naquela época, sobre movimentos de tropas e uniformes.


— Coisas limpas.


Respirei profundamente:


— Isso.


— Você ficaria feliz se eu o fizesse?


— Que diferença faz? Eu faria Vovó feliz, e já que você está em Bon Temps e parece querer morar por aqui, seria uma boa jogada de relações públicas.


— Você ficaria feliz?


Ele não fazia o tipo que deixava você se esquivar a uma pergunta.


— Bem, eu ficaria sim.


— Então, concordo. Farei isso.


— Vovó pediu que, por favor, você comesse antes de aparecer por lá — eu disse.


De novo ouvi a risada roncar, de um modo mais profundo dessa vez.


— Agora, estou ansioso por me encontrar com ela. Posso ligar para você uma noite dessas?


— Ah. Claro. Trabalho minha última noite amanhã, e no dia seguinte ficarei de folga por dois dias, por isso acho que o melhor será a gente se encontrar na noite de quinta-feira. — Ergui meu braço para olhar o relógio de pulso. Estava funcionando, mas o vidro estava coberto de sangue seco. — Oh, merda — eu disse, molhando meu dedo na boca e limpando a superfície do relógio com cuspe.


Apertei o botão que iluminava as mãos, e engoli em seco quando vi as horas.


— Oh, nossa, tenho que ir pra casa. Espero que Vovó tenha ido dormir.


— Ela deve se preocupar por você estar fora de casa até tão tarde da noite, sozinha — Bill observou.


Sua voz tinha um tom de reprovação. Será que estava pensando em Maudette? Tive um momento de desconforto profundo, imaginando se de fato Bill a conhecera, se ela o convidara para ir ao seu apartamento. Mas rejeitei a idéia porque eu estava teimosamente me recusando a refletir sobre a natureza estranha e horrível da vida e da morte de Maudette; eu não queria que aquele horror todo lançasse uma sombra sobre o pouquinho de felicidade que conseguira.


— É parte de meu trabalho — eu disse acidamente. — Não dá pra evitar. Eu não cubro noites inteiras o tempo todo, de qualquer modo. Mas, quando posso, cubro.


— Por quê? — O vampiro me empurrou para o alto, e ergueu-se facilmente do chão.


— Gorjetas melhores. Trabalhar mais. Não ter tempo para pensar.


— Mas a noite é mais perigosa — ele disse, desaprovando.


Ele bem que devia saber dessas coisas.


— Sem essa, não venha bancar minha avó comigo — eu ralhei com ele, suavemente. Já tínhamos quase chegado ao estacionamento.


— Sou mais velho que sua avó — ele me lembrou.


Aquilo encurtou a conversa.


Depois que saí da floresta, fiquei parada, olhando. O estacionamento estava sereno e intacto como se nada nunca houvesse ocorrido ali, como se eu não tivesse sido surrada até quase morrer naquele trecho de cascalho há apenas uma hora, como se os Ratos não tivessem ali encontrado o desfecho sangrento de suas vidas.


As luzes no bar e no trailer de Sam estavam apagadas.


O cascalho estava úmido, mas não manchado de sangue.


Minha bolsa estava no capo do meu carro.


— E que será que aconteceu com o cachorro? — eu disse.


Virei para olhar para meu salvador.


Ele não estava lá.





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